Recentemente, Gustavo Carvalho - Tartaruga - disponibilizou um artigo que ele escreveu há cerca de dois anos sobre o treino de Parkour descalço a partir de sua própria experiência. Um material que aborda vários aspectos, benefícios, dificuldades e outras percepções.
Para aqueles que nunca treinaram assim, vale começar a experimentar ou repensar esse treino. Aos que já treinam descalço, é uma forma de ter essa outra visão e relacionar com a própria experiência.
Pessoalmente, fico muito feliz em ler esse artigo, como eu mesmo treino descalço, guga é quase um "mestre" para mim, seu jeito de ser e seu parkour trouxeram ensinamentos de grande valia para aqueles que souberam perceber isso.
ps: Lembro até hoje de um treino à noite e na chuva, em que ele fazia um flow em azulejos e barras bem fluído, seguro e rápido. Aquilo até hoje me inspira.
ps²: fotos adicionadas.
Sem mais, segue abaixo o material:
Sem mais, segue abaixo o material:
" Resumo: Se a parte prática do parkour é intrínseca dos seres humanos, e
da maioria dos animais, fazê-lo descalço é mais natural ainda. Entretanto ainda
é encarado com controvérsia e certo preconceito pela maioria das pessoas,
praticantes ou não. Com base nos conhecimentos empíricos adquiridos ao longo de
mais de 6 anos de prática, os benefícios e dificuldades serão apresentados,
explanados e exemplificados.
“Parkour é a prática corporal e fenômeno cultural,
que se desenvolveu a partir do princípio de se deslocar de um ponto a outro, de
forma rápida, segura e eficiente, utilizando apenas o corpo como ferramenta,
como disseminado por David Belle”.
(ABPK 2011)Essa é a definição oficializada pela associação e que, de maneira geral, é concordada pela maioria dos praticantes. Mas se é “utilizando apenas o corpo como ferramenta” por que os praticantes são tão dependentes dos tênis? Talvez por um fator cultural, já que tênis e sapatos fazem parte do dia a dia da população, inclusive em atletas de alto rendimento, combinado com modismo/comodismo em não questionar e seguir o que a maioria faz, como acontece com calças de moletom, kalenjis, alguns movimentos, etc.
Mas movimentar-se livremente sem tênis
é intrínseco do ser humano, desde os tempos antigos até os atuais. Nascemos
livres, mas logo somos ensinadas a seguir determinadas regras que limitam
nossos movimentos e transformam nossos pés em cascos.
Quando comecei a treinar descalço, a
filosofia de estar sempre preparado era muito forte, coisa que não se vê muito
atualmente, então, junto à ideia de utilizar apenas o corpo, tirei meus tênis e
passei a treinar apenas descalço. Eu queria poder treinar em qualquer momento,
em qualquer lugar, em qualquer condição e fazer o que fazia calçado em qualquer
situação, afinal se todos os outros animais podiam se movimentar sem apetrechos, por que eu seria diferente?
Com o passar do tempo percebi outros
benefícios. Eu me machucava menos. Tanto porque sem tênis eu arriscava menos,
pois sabia que tinha menos proteção, quanto por me tornar mais forte e com
técnicas de amortecimento de impactos melhores já que podia sentir melhor meu
corpo e o ambiente.
Parece estranho que ao retirar um
apetrecho que trás segurança torne a prática mais segura. Mas isso depende
principalmente do praticante. Se ele tentar se movimentar da mesma forma descalço
como faz de tênis provavelmente irá se machucar, e é aí que está a questão. Ao
tirar o tênis é necessária uma mudança de visão que torne possível uma
aprendizagem que fortalece e protege o praticante.
Primeira coisa que o praticante deve
mudar ao tirar o tênis é a visão do ambiente. Provavelmente você não poderá
passar pelos mesmos lugares que passava antes, pelo menos não com os mesmos
movimentos. A falta de tênis é um obstáculo a mais que tem que ser
ultrapassado. Mude os caminhos, mude os movimentos, adapte-se. Para isso o
praticante deve também evoluir sua percepção sobre ele mesmo. Os tênis
transformam os pés das pessoas em cascos, uma coisa sólida, única. Mas nós
temos pés, compostos de calcanhar, tarso, metatarso e dedos. Os dedos que são
tão importantes para nossa movimentação, principalmente para o equilíbrio, são
simplesmente esquecidos e ignorados quando calçamos um tênis. Então é preciso
reavaliar biomecanicamente como você está utilizando seus movimentos e passar a
sentir e avaliar com cuidado os movimentos realizados.
Um parâmetro muito utilizado para
avaliar a absorção de impactos é a quantidade de barulho que o impacto produz.
Não é uma medida muito correta, pois é possível que um impacto cause muito barulho,
mas seja bem absorvido pelo corpo enquanto outros com menos barulho seja mal
absorvido, mas de maneira geral funciona bem. Entretanto ao retirar o tênis se
torna mais difícil utilizar esse parâmetro, então é necessário um esforço maior
para sentir o impacto e como ele foi absorvido.
Sem tênis você poderá sentir melhor o
ambiente, saberá a aderência de determinada superfície ao pisá-la e sentirá
melhor o efeito dos impactos, principalmente no calcanhar e em pequenas
corridas e pulos. Ao perceber isso, até meu caminhar se modificou para não
sobrecarregar a estrutura óssea.
Ao me deparar com um movimento novo o
qual sinto medo de fazer, analiso se conseguiria realiza-lo descalço. Se chego
a conclusão que não, então, geralmente, meu corpo ou mente ainda não estão
preparados para aquele movimentos. Pois se eu não consigo realizar descalço, é
porque não tenho técnica ou força o suficiente, e passar essa responsabilidade
para o tênis é perigoso.
Então as vantagens que o tênis traria, você pode ter apenas evoluindo seu corpo e sem ter as desvantagens dos tênis.
Em outras palavras, sua técnica tem que superar o tênis, o que é muito bom para
um tracer que busca evoluir consistentemente. E aí entra outro ponto o qual já
fui questionado algumas vezes: ao retirar o tênis você estaria atrasando a evolução.
Isso depende do conceito de evolução de cada um. Normalmente quem me apresenta
esse ponto tem como conceito de evolução o constante aumento na distancia,
altura, velocidade de determinados movimentos. Em outras palavras, movimentos
visualmente impactantes. Vendo por esse lado talvez sim, estaria atrasando a
evolução, mas esse não é nem de perto meu conceito de evolução. Meu conceito de
evolução é tornar meu corpo o mais adaptável possível - com força, velocidade,
destreza, flexibilidade, possibilidades de movimentos, controle psicológico -
para movimentação segura e eficiente no ambiente, e para isso o treino descalço
funciona muito bem.
A coisa que mais me orgulho nesses 6 anos de prática é não ter nenhuma articulação machucada, ou dores ao realizar alguns movimentos, como vejo muita gente reclamando. Apenas uma vez tive uma luxação no cotovelo que me deixou parado por um mês, mas sem nenhuma sequela. Fora isso, nunca passei mais de uma semana sentindo dor por conta de alguma queda ou movimento errado. E devo boa parte disso a consciência que criei e adquiri treinando descalço. Sinto que estou vivendo o lema “Ser e durar”, e acredito que farei isso por bastante tempo.
Mas nem tudo são flores, há algumas
desvantagens. Primeiro há o preconceito devido a forte cultura de utilização de
calçados. Ninguém descalço na rua é bem visto pela sociedade, principalmente um
tracer que em alguns casos já não é bem visto, ao estar descalço só piora essa
visão. Há também o preconceito entre os próprios praticantes, coisa que já está
mudando, mas há 4 anos atrás era muito forte. Muitos tracers nem sequer
cogitavam a possibilidade de treinar parkour descalço, logo ao ver uma pessoa
descalça no treino perguntavam: “Ué, não vai treinar?”.
Dificuldades físicas também existem, e
são as mais fáceis de perceber. Obviamente ao retirar o tênis seu pé estará
exposto a machucados superficiais na pele - cortes, furos, abrir calos,
queimar, bater os dedos - e isso não tem como impedir, no máximo evitar,
prestando atenção no ambiente e na sua movimentação e calejando o pé como
fazemos com as mãos. Além disso, como não tem o tênis para “absorver” o impacto
sua técnica e sua força tem que ser suficientes. Isso não é necessariamente uma
desvantagem, já que se trata de um fortalecimento e aprimoramento do corpo o
que pode contribuir na longevidade.
Há também uma dificuldade psicológica,
que acredito é a mais sentida na prática. Sem tênis sua área de erro crítico é
maior. Por exemplo, num salto de precisão calçado, ao cair na ponta dos dedos
geralmente não há problemas, mas descalço fazer isso é muito arriscado e pode
causar um acidente grande. O mesmo vale pro calcanhar, que ao aterrissar numa
barra de calcanhar calçado, apesar de sentir que não é o correto, não causa
dores, pois a maioria dos tênis possuem bons amortecedores atrás, mas descalço
você poderá machucar o pé ou pelo menos sentir uma boa dor. Além da área de
erro ser maior, ao acontecer o erro as consequências podem ser bem piores já
que não haverá o tênis para lhe proteger. Intuitivamente ou não o tracer sabe
disso e acaba por criar um medo a mais quando está descalço, o que não
necessariamente é ruim já que isso pode te mostrar que você ainda não está
pronto.
Enfim, tudo se resume a aumentar a
sensibilidade e potencializar a performance e longevidade através de um caminho
mais difícil e lento."
1 comentários:
Denis, fique a vontade! Só mantém os créditos e está tudo certo!
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